Desorientada, confusa, machucada. As cicatrizes finas pareciam profundas e deixavam isso claro. Algumas não estavam completamente fechadas, estavam ligeiramente rosadas e macias. Vulneráveis. Podia-se notas as cicatrizes na sua alma. Os olhos dela me mostravam bem o vestigio de algo... um algo que, o que seria? Ah, bem ali, como o rastro de um animal selvagem, de um fogo destruidor: o desespero. Eu podia reconhecer todo o seu passado pelo olhar dela. Aqueles olhos me contavam uma história, meio difusa, é verdade, mas ainda assim era a sua história. Tão difusa quanto ela costumava ser. Perdida dentro de si mesma. O que ali dentro era ela? O que eram os outros? O que tinha sido forjado, refletido do mundo corrompido ao seu redor? Ela estava podre. E apodrecia a cada dia mais, cada milímetro do seu âmago... enegrecido.
Eu me apiedava daquela garota. Não o ser físico a minha frente, mas a garota que vivia em seu olhar. Eu entendia a dor dela, eu a sentia. E de repente a dor dela era eu. Eu havia encarnado aquela dor, devastadora, caótica e meramente opcional. Agora eu entendia. Ela escolhera aquela dor. Por que? Eu sabia porque. É verdade que a tortura era desesperadora, mas talvez fosse uma escolha melhor que não sentir nada. Quase um alívio. Quase. Aquilo era a prova de que ela estava viva: aquilo que machucava a ela e a todos ao redor. Havia se tornado um vício. Havia se tornado parte dela, como um câncer que se integra à carne; então a pura desesperança nos conforma com a idéia da morte e simplesmente deixamos com que o tumor cresça. Ela havia se entregado àquele câncer; talvez porque, se ela pudesse morrer, queria dizer que ela ainda sobrevivia. Ela se agarrava à morte como o único indício de vida, à dor como a única sensação existente. Não era exatamente saudável, mas era tudo o que ela tinha.
Então ele veio. E eu quase podia enxergar seu rosto no olhar dela. E mesmo a lembrança fosca era extremamente bela. Misericordiosa, de uma humildade honrosa. Uma humildade óbviamente injusta, de alguém que merecia o mundo só para si e ainda assim o doaria para ela. Ele estava claramente apaixonado por ela, enloquecido de amor. Eu podia vê-lo como o próprio amor. E ele foi até ela.
Ela abraçava-se à dor. Mas a cada ferida, era ele quem sangrava. Ele sentia os golpes na própria carne, e mesmo assim se aproximava. E ela se agarrava à dor cada vez mais. E eu sabia que ele mal podia suportar o sofrimento dela.
- Solte. Deixe ir.
- Não! - ofegou ela, trêmula. - Não, é tudo o que eu tenho.
- Solte. - ele repetiu calmamente. Tocou-a no braço e puxou-a para si.
Mas ela se debatia. Ela resistia àquele toque macio, resistia àquele amor desmerecido.
- Não posso abandoná-la para qualquer um - ela insistiu. - Alguém tem que carregá-la, alguém...
Ele tomou-a nos braços. Abraçou-a como ela nunca havia sido abraçada. E tomou também para si a dor. O desespero. O sofrimento. A confusão. E o caos.. ele afastou o caos. A garota sentiu o que nunca havia sentido antes. Podia ser chamado de paz, mas não. Era muito, muito maior que isso. Abraçou-o de volta.
E foi assim. As feridas abertas, bem, elas foram se cicatrizando. Ele as foi cicatrizando. E pela primeira vez na vida, a garota foi cuidada. Foi amada. Um pequeno pedaço de uma bela história, contavam aqueles olhos.
Me virei de costas para o espelho. Não podia sustentar por muito tempo a lembrança de toda a minha tristeza. Atrás de mim, sim, lá estava ele.
Você me amou primeiro, disse eu. E o seu amor me cativou.
“E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (João: 8:32)
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